Desde o começo dos tempos, o homem cria simbolismos. A matemática, o alfabeto, os desenhos e pinturas, as instalações artísticas, a representação dramática, tudo isso são formas que o homem encontrou para conseguir se comunicar e transferir conhecimentos. A pintura é uma forma de representar o que se passou, ou se está vivendo, pensando ou sonhando para que outras pessoas possam conhecer. Mas ela é também um impulso criativo natural, onde o artista desenvolve habilidades e descreve pensamentos. Um desses símbolos representados é o carnaval. É notório que esta é uma das maiores festas populares do Brasil e, se não for, a de maior amplitude e importância. Desde o final do século XIX, com a criação do samba e a partir daí, o surgimento das marchinhas, o carnaval se destaca na vida do brasileiro, e principalmente, na do carioca. Ele se transforma numa grande expressão de nacionalidade do povo brasileiro. As artes percebem este movimento e inicia-se um processo de representação desta festa e dessas pessoas. Muitos artistas pintaram o carnaval, os foliões e as fantasias, a brincadeira de rua, a guerra de confetes. E até hoje, os fotógrafos não se cansam de capturar essas imagens, o cinema não cansa de levá-lo às telas, o teatro, de representá-lo. E as artes plásticas no Brasil?
No início do século XX, o Brasil começa a perceber a produção artística internacional. Na década de 20, um grupo de escritores e artistas plásticos brasileiros se reúne e realiza a Semana de Arte Moderna (1922) no Teatro Municipal de São Paulo. Liderados por Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade e Menotti del Picchia, esta Semana defendia que a arte deveria retratar a realidade brasileira. Porém seus participantes ainda eram muito influenciados pela estética européia das vanguardas, o que vai continuar acontecendo mesmo depois dela.
No Brasil repercutiram fracamente movimentos como Cubismo (que influiu, porém, sobre o Pau-Brasil, de 1926, e o antropofagista, de 1928, de Tarsila do Amaral), o Futurismo, a Arte Metafísica, o Surrealismo. Um construtivismo retardado originou-se no Rio de Janeiro e em São Paulo sob a denominação de Concretismo, logo seguido pelo Neoconcretismo, na década de 1950. Quanto ao Expressionismo, tem em Segall e em Portinari seus principais seguidores, e no setor da gravura gerou um mestre como Goeldi, falecido em 1961. Os principais “ingênuos” nacionais são, no Rio de Janeiro, Heitor dos Prazeres, em São Paulo, José Antônio da Silva. Logo após a II Guerra Mundial, o Realismo Social fez seu aparecimento, com artistas como Scliar e Glauco Rodrigues, que depois iriam conduzir suas pesquisas em outros sentidos. Com Antônio Bandeira, Milton Dacosta e outros, instalou-se, por volta de 1947, o Abstracionismo, hoje generalizado. Quanto a independentes, possui o Brasil em Pancetti, Guignard, Djanira e Iberê Camargo seus mais notáveis representantes. www.portalartes.com.br/portal/historia_artes_plasticas_brasil_artes_plasticas.asp
As artes plásticas no Brasil.
Com todas essas influências, podemos perceber o quão rico se tornou a produção nacional. Nossos artistas começaram a usar as influências internacionais numa grande mistura com as características do Brasil.
Assim, vamos analisar duas obras sobre o carnaval: Carnaval em Madureira (1924), de Tarsila do Amaral e Carnaval II (1965), de Di Cavalcanti. Apesar de serem quadros de épocas diferentes, eles têm muito em comum, como veremos adiante. Agora, faremos uma leitura individual.
Em 1922, Tarsila do Amaral volta ao Brasil depois de estudar desenho, escultura e pintura na Europa. Ela se junta aos intelectuais brasileiros organizadores da Semana de Arte Moderna e ao Modernismo que surgia no Brasil. Ela não chega a participar efetivamente da Semana, mas “mais do que simplesmente retratar o Brasil com um olhar modernista, a artista desenvolveu algo que foi percebido à época como um jeito brasileiro de pintar moderno.” E por isso, ela seja tão lembrada hoje quando se fala em Semana de Arte Moderna.
Em 1923 ela retorna à Europa e estuda com Albert Gleizes e Fernand Léger, pintores cubistas. Em 1924, Tarsila vem de Paris e passa o carnaval no Rio de Janeiro. É neste momento que ela pinta o quadro Carnaval em Madureira.
As influências cubistas no quadro, estão presentes desde os telhados das casas às negras fantasiadas. Mas duas coisas chamam realmente atenção nesta obra, do ponto de vista artístico. Tarsila pinta a Torre Eiffel, uma obra arquitetônica parisiense importantíssima no meio de Madureira, periferia da cidade do Rio de Janeiro. Cubista, a Torre se destaca do desenho. Pelo tamanho – muito maior do que as casas e morros do quadro, e pelas cores e formas – toda em tons de marrom e amarelo e formas geométricas, contrastando com o intenso colorido ao redor e formas arredondadas dos morros e mulheres. O outro destaque do quadro são as cores usadas pela artista que se diferenciam da estética cubista. Nesta, se tem como característica cores austeras, do branco ao negro passando pelo cinza, por um ocre apagado ou um castanho suave. E o que se vê no quadro são cores vivas como o verde em vários tons, o azul, o vermelho e o amarelo.
Mas sob o ponto de vista sociológico, podemos entender o Carnaval em Madureira como uma crítica aos valores em voga no país daquela época. A exaltação à cultura internacional, representada pela Torre Eiffel, pode ser entendida como uma crítica da artista, pois permanece presente mesmo num momento de profunda identidade nacional e exaltação à cultura popular que é a festa do carnaval brasileiro. Porém, para o pesquisador Carlos Eduardo Riccioppo, Carnaval em Madureira permite conviver “a Torre Eiffel e o carnaval, sem que qualquer um dos planos iconográficos adquira supremacia sobre o outro”. Para Sônia Salzstein, essa é a maior qualidade da pintura de Tarsila. Ela consegue manter no mesmo quadro situações completamente diferentes, como a Torre Eiffel e o carnaval em Madureira e com isso possibilitar suas várias interpretações, com um vocabulário moderno, descritivo quanto aos tipos étnicos e ainda na geometria das formas, numa paisagem regional.
Di Cavalcanti, ou melhor, Emiliano Augusto Cavalcanti de Alburquerque e Melo era um carioca apaixonado pela sua terra, suas mulheres, músicas e prazeres. Inicia sua carreira como cartunista, seguindo para as pinturas em pastel e desenhos. É um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna, mas em 1923 viaja para a Europa, onde só aí entra em contato com pintores como Braque, Matisse e Picasso. Deste último, sofreu as maiores influências, principalmente o cubismo. Para alguns pensadores de sua obra como Sérgio Millet e Luís Martins, Di seria influenciado também, quase que instintivamente pelo Fauvismo, e às vezes com alguma coisa de expressionista, mas que não levou adiante por causa da grande diferença entre eles. Segundo Luís Martins, o pintor é doce, preguiçoso, sensual e barroco e o movimento, seco, ascético, agressivo e gótico.
Cavalcanti tinha uma adoração muito grande pela cidade do Rio de Janeiro e seus temas:
Foi na paisagem carioca, nas figuras das mulatas e dos pretos, nas imagens do samba, do carnaval, dos coqueiros, das flores e das frutas, dos peixes e dos pescadores, que Di Cavalcanti investiu seu destino de artista, denunciando, de maneira instintivamente rebelde e sensual, a alegria ou o sofrimento, o drama cotidiano, enfim, do povo carioca e da realidade brasileira. PEIXOTO, Maria Elizabete Santos.Seis Décadas de Arte Moderna na Coleção Roberto Marinho, Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1985. pg. 33-36 Disponível em http://www.artedata.com
Sua obra tem uma riqueza de detalhes muito grande. Di gostava de retratar as sutilezas da cidade, suas características regionais, bairristas. As mulheres, quase sempre mulatas e negras, eram mostradas com uma sensualidade ímpar, a beleza plástica exaltada nos movimentos e posições.
Nas paisagens, destacam-se antes de tudo as características do tropical e do popular: praias e a vida da cidade litorânea, as favelas, os morros e as casas típicas dos subúrbios, neste caso reminiscências da infância em São Cristóvão. (...) As mulatas, tema predominante, foram objeto de grande paixão do artista. A plasticidade e a sensualidade inerentes à anatomia, o olhar triste, as curvas angulosas, o ar misterioso e os movimentos lentos e preguiçosos encantaram-no e deram origem a centenas de telas nas quais o pintor explora movimentos e posições sob todos os ângulos, realçando as formas abundantes e os contornos até os limites do fantástico e do onírico. O universo de Di Cavalcanti singulariza-se na cor, na festa, no povo e nos elementos da natureza. Com bastante regularidade, representou em sua pintura as flores e os alimentos, as coisas simples e essenciais, com o mesmo lirismo e a mesmo o próprio sentido da sua existência. PEIXOTO, Maria Elizabete Santos.Seis Décadas de Arte Moderna na Coleção Roberto Marinho, Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1985. pg. 33-36 Disponível em http://www.artedata.com
Por mais que gostasse das belezas da vida, o artista era consciente da realidade em que vivia, chegando a retratar também os problemas sociais de sua época, como as reivindicações populares e algumas vezes, os pobres. Para o artista, o carnaval sempre representou uma felicidade por ele pertencer a um lugar como o Rio de Janeiro, com interesse pelos motivos simples e uma visão alegre e autêntica, além de poder participar desta festa tão alegre: "No carnaval eu sempre senti em mim a presença de um demônio incubo que se desvendava como um monstro, feliz por suas travessuras inenarráveis. É uma das formas de meu carioquismo irremediável e eu me sinto demasiadamente povo nesses dias de desafogo dos sentimentos mais terrivelmente terrenos de meu ser..." CAVALCANTI, Di. Di, falando... Disponível em http://www.dicavalcanti.com.br/apresentacao.htm Acesso em 27/05/2008
Na pesquisa do crítico Jaime Maurício, Di Cavalcanti pinta de uma forma muito brasileira o que vê e sente. “Nosso prazer diante das telas de Di nasce desse encontro do que subsiste na sua pintura de pessoalmente tumultuoso com o rigor da expressão definitiva, admiravelmente ordenada. No mundo do artista, feito de mulatas, pescadores, músicos, palhaços, meretrizes, circos, mercados, bordéis, portos e do mar nunca muito longe, nada há de pletórico, congestionado, ou simplesmente ornamental. Tudo, se bem que amplo, generoso, rico, permanece essencial, participa de uma realidade mais profunda e renovada.” ROSA, Renato. Apud MAURÍCIO, Jaime. Di Cavalcanti: o enamorado da vida. Disponível em http://www.dicavalcanti.com.br/apresentacao.htm
Acesso em 27/05/2008.
Quando, em 1923, ele parte para a Europa e se depara com a fase neoclássica do cubismo de Picasso, Di se encanta. É aí que ele descobre que toda aquela beleza do corpo feminino pode ser retratada e explorada, bem a seu jeito. Em Carnaval II, de 1965 – após a segunda viagem dele à Europa – percebemos a influência cubista nas pessoas aproveitando o carnaval ao fundo, na construção das casas ou no painel lateral. Mas a evidência das mulheres aparece logo em primeiro plano onde a baiana sentada e a mulata se destacam. Para Luís Martins, as mulheres de Di Cavalcanti aparentam atitudes de odaliscas, meio envoltas num mistério, como a mulata, por exemplo. O gosto pelas cores também se evidencia neste quadro assim como o Carnaval em Madureira, de Tarsila do Amaral. O uso das cores fortes e vibrantes se destaca daquele cubismo mais tradicional.
Luís Martins avalia ainda que essa forma de pintar de Di não é somente pitoresca. Ela tem uma característica de representação social,
uma valorização lírica do que há de profundo e permanente na alma do homem brasileiro, esse misto de nostalgia lusitana, ternura negra e melancolia índia, esse complexo de miséria, natureza tropical, macumba, exaltação sexual, praia e procissão, essa alegria triste que explode nas canções carnavalescas, onde o malandro dos morros cariocas suaviza em doce, sorridente e resignada ironia a eternidade dos temas românticos. MARTINS, Luís. Di Cavalcanti. São Paulo: Art Editora, 1983.
www.historiadaarte.com.br/cubismo.html
Acesso em 27/05/2008
Apesar dos dois quadros acima terem sido concebidos em momentos diferentes – o primeiro de 1924, e o segundo, 33 anos depois – eles têm muito em comum, como vimos. As influências cubistas de Picasso, mais precisamente da fase neoclássica dele, onde as cores estão mais presentes e vibrantes e as formas se arredondam, se destacam. As referências sociais também estão lá, seja numa crítica à periferia ou na exaltação a uma festa popular. Tarsila mantém um toque mais geométrico em sua pintura por ser, ainda talvez, o início desta fase “picassiana”, mas Di está mais aprofundado, até nas formas arredondadas que mais tarde serão melhores percebidas na obra européia. O amor a sua terra e ao seu povo, sua bossa e graça estão lá, nos dois quadros, se misturando harmonicamente às questões européias como da Torre Eiffel (Carnaval em Madureira) com o negro de cartola (Carnaval II). Nas duas pinturas também não encontramos pessoas brancas. Os negros e mulatos, representando o povo brasileiro, brincam e se divertem no carnaval. É aí que temos a sensação da crítica que os dois artistas possivelmente queriam nos transmitir. Pode ser que para eles, a cultura do carnaval, tipicamente popular, só tem identificação com os negros, descendentes dos escravos africanos e não com toda a população. Apesar de se acreditar que a origem do carnaval tenha sido festas do Deus Baco, na Grécia Antiga, concretizando assim a influência européia na festa.
De qualquer maneira, desde o seu aparecimento no Brasil, o carnaval se tornou a grande representação popular. Diversos artistas representaram esta festa, mas é em Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral que encontramos o destaque ideal na relevância junto ao pensamento da sociedade do século passado. As formas características das mulatas pintadas “cubisticamente” e as cores vivas conseguem transmitir com perfeição toda a graça e beleza da festa, alegria e leveza dos foliões e as formas doces e coloridas da geografia e arquitetura carioca e brasileira.
Bibliografia:
CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros [1790 – 1930]. Rio de Janeiro: Record, 2008.
CAVALCANTI, Di. Di, falando... Disponível em http://www.dicavalcanti.com.br/apresentacao.htm Acesso em 27/05/2008
MARTINS, Luís. Di Cavalcanti Grandes artistas brasileiros. São Paulo: Art Editora, [s.d.].
PEIXOTO, Maria Elizabete Santos.Seis Décadas de Arte Moderna na Coleção Roberto Marinho, Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1985. pg. 33-36 Disponível em http://www.artedata.com Acesso em 27/05/2008
RICCIOPPO, Carlos Eduardo. Tarsila nos cipós da cultura. Disponível em www.iberecamargo.org.br/content/revista_nova/artigo_integra.asp?id=52 Acesso em 27/05/2008
ROSA, Renato. Apud MAURÍCIO, Jaime. Di Cavalcanti: o enamorado da vida. Disponível em http://www.dicavalcanti.com.br/apresentacao.htm Acesso em 27/05/2008.
www.portalartes.com.br/portal/historia_artes_plasticas_brasil_artes_plasticas.asp As artes plásticas no Brasil. Acesso em 27/05/2008
www.tarsiladoamaral.com.br Acesso em 27/05/2008
www.dicavalcanti.com.br Acesso em 27/05/2008
Fontes:
ARAÚJO, Olívio Tavares de. Pintura brasileira do século XX – Trajetórias relevantes. Rio de Janeiro: 4 Estações, 1998. pg. 46-48 e pg.54-59.
FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
MORAES, Eneida de. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Record, (1958) 1987
RESENDE, Neide. A Semana de Arte Moderna. Ática, Série
Princípios, 1993.
SALZSTEIN, Sônia. A saga moderna de Tarsila. In: TARSILA, anos 20. Org. Sônia Salzstein. Textos de Aracy Amaral et al. São Paulo: Galeria de Arte do Sesi: Página Viva, 1997. p.13, p.16.
MARTINS, Luís. Di Cavalcanti. São Paulo: Art Editora, 1983.
www.historiadaarte.com.br/cubismo.html Acesso em 27/05/2008
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